Big Besteirol Brasil

Trabalhei numa empresa multinacional, com faturamento anual de 1 bilhão de reais e que empregava 2 mil funcionários apenas no Brasil, e que não foi páreo para um personagem criado há poucos anos pela telinha. Explico. Num belo dia, estava na área de Customer Care (área em que trabalhavam só mulheres), para solicitar a uma usuária chave me disponibilizar algumas informações em caráter de urgência, pois havia um caminhão carregado de nossos produtos “presos” na recepção de um dos chamados Key Accounts (grandes clientes), por inconsistência de informações. De repente, outra garota chegou esbaforida, dizendo: “Gente, adivinha quem está lá embaixo, no prédio? O Alemão!!! Houve um tremendo de um alvoroço. Nunca vi nada igual. Parecia que todo o prédio estava a soçobrar. Correria para todos os lados, gritos, maquiagem e batom de última hora, celulares com disparadores de fotos em punho, e todas correram em direção às duas saídas do 7º andar.

Eu fiquei só, sem entender muito bem o ocorrido. E o caminhão aguardando as tais informações na entrada do centro de distribuição de uma grande rede de hipermercados. Passados intermináveis 20 minutos, elas retornam. O sorriso nos lábios denunciam que algo de bom havia acontecido lá embaixo. “Tiramos fotos do Alemão!”, disseram. E eu pensei: que raio de “Alemão” é esse? Seria o Michael Schumacher? Enquanto tentei identificar o tal personagem, elas trocaram as fotos tiradas pelos celulares, e violando o código de conduta da companhia, transferiram as imagens para seus desktops. Depois, enviaram rapidamente as fotos por e-mail sabe-se lá para quantas pessoas.

Trinta minutos se passaram. E o caminhão continuava aguardando. E não era só isso: Os vendedores tentaram confirmar alguns pedidos emitidos, e outros clientes pediram outras informações. O tempo parou por 30 minutos, uma área inteira parou por meia hora, e o caminhão ficou parado, bem como os vendedores e os clientes. Eu fiquei calculando o tamanho do prejuízo que a empresa estava tendo, só por causa do tal do “Alemão”.

Então eu não me contive: perguntei à garota que me deixou falando sozinho, o que havia acontecido, e ela, pasma, pergunta? Você não o conhece? Não acredito! Você só pode estar brincando! Eu me senti como um ser de outro planeta, que acabara de pousar na Terra. Quando ela me disse que era o principal personagem de um reality show, eu não me segurei: Toda essa revolução só por causa deste cara? Ela simplesmente me ignorou, voltando ao trabalho com um sorriso nos lábios. Elas pensando no Alemão e eu pensando no caminhão...

A popularidade do gênero

Bem, se eu já não gostava desses tipos de programas, a partir daquele dia eu passei a odiá-los. E passei a reparar como esse gênero de programa estava se popularizando.

É impressionante a quantidade de televisores que ficam ligados na “telinha” para assistir o “barraco” e torcer pelos seus participantes preferidos. Você pode ouvir os comentários sendo proferidos no ônibus, no metrô, dentro de elevadores, e até nos restaurantes. Palavras, como “eliminados”, “paredão”, “imunidade”, dentre outras, tornaram-se jargões comuns no diálogo do brasileiro.

E elas se multiplicam aos milhares. No canal aberto, a Globo exibe o BBB. Você troca de canal, e aparece “A Fazenda”. Então troca de novo e dá de cara com Solitários, Esquadrão da Moda, e Troca de Família. Quer mais baixaria? Tem o Buzão do Brasil. Sem contar aqueles que já se foram, como Casa dos Artistas, Casa dos Desesperados e No Limite. A tática é sempre a mesma: as pessoas devem sofrer (moral, psicológica e fisicamente) para tentar conquistar o prêmio. Discussões devem ocorrer com frequência, para manter o “nível” de audiência.

Não é a toa que as redes de TVs investem tanto em tipos de programas assim: eles simplesmente acharam a sua galinha dos ovos de ouro, pelo menos por enquanto. Índice de audiência nas alturas, este tipo de programa é o produto mais rentável das emissoras, com custo quinze vezes menor do que sustentar uma produção de telenovela. Só o programa A Fazenda, da TV Record, conquistou aproximadamente 111 milhões de reais!¹

Este tipo de besteirol não é privilégio dos canais abertos, infelizmente. Nas chamadas TVs por assinatura, eles também se multiplicam, como pragas sendo regadas a cada dia: Survivor, I Want a Famous Face, Cast Offs, Hell´s Kitchen e Troca de Tesouras.

Mas afinal, o que é reality show?

Ele foi criado originalmente por John de Mol e Joop van den Ende em 1999, na Holanda, e recebeu o título de "Big Brother". Eles pegaram esse termo do escritor George Orwell, em seu livro 1984, para designar um olho eletrônico que espionava as pessoas com o intuito de manter o domínio de um Estado totalitário sobre tudo e todos.

Trata-se de um confinamento de um grupo de voluntários, dispostos a serem filmados 24h por dia, sempre com a intervenção de um organizador, que também é o apresentador do programa. Durante esse período de confinamento, existem tarefas a serem realizadas e ocorre a eliminação dos participantes. O objetivo é fazer com que apenas uma pessoa consiga vencer, premiando o vencedor com muita fama e dinheiro. Existe ainda a interação com o telespectador, que, como um rei de Roma, elege quem continua participando e quem será eliminado.

O escritor Jean Baudrillard tinha razão, ao escrever em seu livro Big Brother: telemorfose e criação de poeira (Paris: Sens & Tonka, 2002), quando diz:

“O século XX presenciou toda a sorte de crimes: Auschwitz, Hiroshima e genocídios, mas o único e verdadeiro crime perfeito foi a queda do homem na banalidade, violência mortífera, que, justamente pela indiferença e pela monotonia, é a forma mais sutil de exterminação. Vivemos hoje numa sociedade que mistura todos em um imenso ser indivisível, em total promiscuidade. Em alguma parte, estamos de luto por essa realidade nua, essa existência residual, essa desilusão total. Há, nessa história do Big Brother, alguma coisa de um luto coletivo, mas que faz parte da solidariedade que une os criminosos que somos todos – os assassinos desse crime perpetrado contra a vida real e de cuja confissão nos esvaziamos na tela, que, de qualquer forma, nos serve de confessionário [o confessionário é um dos lugares do Big Brother]. Aí reside a nossa verdadeira corrupção, a corrupção mental, no consumo desse luto e dessa decepção, fonte de gozo contrariado. De qualquer maneira, entretanto, a desautorização dessa palhaçada experimental transparecia no tédio mortal que disseminava.”

A razão do sucesso

A professora Marília P. B. Millan, doutora em Psicanálise, explica:

“A aceleração de giro na produção e no consumo vem influenciando a forma de pensar e agir do indivíduo. Como consequência, presenciamos a crescente volatilidade e efemeridade de modas, produtos, ideias, valores e práticas sociais. O instantâneo e o descartável permeiam nossa experiência, desde os utensílios que empregamos no dia a dia até nossa maneira de pensar, viver e nos relacionar.”²

Ecléa Bosi, professora de Psicologia Social na Universidade de São Paulo, reforça:


“Vivemos hoje a alienação decorrente de um sistema econômico que incita ao consumo constante de objetos cada vez mais descartáveis, estabelece relações rápidas e descontínuas, e torna-se ‘embotadora da cognição, da simples observação do mundo, do conhecimento do outro’".³

Além do que, existe mais um ingrediente para a receita de sucesso: o brasileiro gosta de bisbilhotar a vida alheia. Essa foi a resposta dada por 52% das pessoas que participaram no site da revista Veja.⁴

O BBB e você

Mas, e quanto a nós, cristãos? O que devemos fazer com produtos como esses? Será que existe algo de bom que possamos reter? Não deveríamos encarar apenas como simples entretenimento?

Deixemos que a escritora inspirada Ellen G. White nos responda:

“É lei, tanto da natureza intelectual como da espiritual, que, pela contemplação, nos transformamos. O espírito gradualmente se adapta aos assuntos com os quais lhe é permitido ocupar-se. Identifica-se com aquilo que está acostumado a amar e reverenciar” (O Grande Conflito, pág. 555).

E, finalmente, consultemos a Palavra de Deus:

“Se vós fósseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo” (Jo 15:19).

“Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte” (Mt 5:14).

“Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo” (1Jo 2:16).

“Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiai.” (Ef 6:12).Bem, amigos, nós também estamos sendo observados a cada instante: pelos nossos semelhantes, pelos anjos, mundos não caídos e pelo próprio Deus. E como diz Paulo, "Porque tenho para mim que Deus a nós, apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte; pois somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens" (1Co 4:9).

Não existe nada mais “reality” do que isto.

Por Nei Matsomoto, analista de sistemas da CPB (nei.matsomoto@cpb.com.br)

Notas


² MILLAN, M.P.B. Tempo e Subjetividade no Mundo Contemporâneo - Ressonâncias na Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

³ BOSI, E. O Tempo Vivo da Memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.