Deus, deuses ou imaginação?

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Pense na pessoa mais teimosa, para quem é quase impossível falar de Deus. Um ateu decidido. Não, não apenas ateu, mas o mais famoso filósofo ateu de sua época. Esse era o inglês Antony Flew, o maior filósofo ateu do século 20. Na verdade, Flew é considerado o principal filósofo dos últimos cem anos. Seu ensaio Theology and Falsification (Teologia e Falsificação) se tornou um clássico e a publicação filosófica mais reimpressa do século passado. Ele passou mais de cinquenta anos defendendo o ateísmo.

No livro Um Ateu Garante: Deus Existe, [1] Flew conta como chegou a negar a existência de Deus, tornando-se ateu. Na segunda parte da obra, ele analisa os principais argumentos que o convenceram da existência do Criador. Na página 144, seguindo o paradigma aristotélico, [2] ele escreveu: "Minha jornada para a descoberta do Divino tem sido, até aqui, uma peregrinação da razão. Segui o argumento até onde ele me levou, e ele me levou a aceitar a existência de um Ser autoexistente, imutável, imaterial, onipotente e onisciente".

Flew diz que dois fatores em particular foram decisivos para sua mudança do ateísmo para o teísmo. Um deles foi a crescente empatia pelo insight de Einstein e de outros cientistas notáveis para os quais deve haver uma inteligência por trás da complexidade integrada do universo físico. A segunda foi o próprio insight de Flew, segundo o qual a complexidade integrada da vida – que é muito mais complexa do que o universo físico – somente pode ser explicada em termos de uma Fonte inteligente. Em outras palavras/; informação tem que provir de uma fonte; vida só pode provir de vida.

Argumento Cosmológico
Quando Antony Flew afirma que a "complexidade integrada do universo físico" foi um dos motivos de seu abandono do ateísmo, está na verdade, se referindo ao argumento do design inteligente, expresso pelo apóstolo Paulo em Romanos 1:20.

Para Flew e outros cientistas, é possível chegar à conclusão de que Deus existe valendo-nos inicialmente da chamada "revelação natural", ou seja, o Universo criado. As digitais espalhadas na natureza apontam para as mãos do grande Designer cósmico, cujos "atributos invisíveis" podem ser detectados por meio "das coisas que foram criadas". [1] A criação do Universo aponta para o Criador e consiste num dos mais conhecidos argumentos para a existência dEle. Esse argumento também é chamado de cosmológico, e pode ser expresso assim:
1. Tudo o que teve um começo teve uma causa.
2. O Universo teve um começo.
3. Portanto, o Universo teve uma causa.

A primeira premissa nos parece lógica e não necessita de mais argumentação. Apela mesmo ao senso comum. Já a segunda premissa não chega a ser unanimidade e precisa ser analisada de mais perto. Se a conclusão for a de que o Universo teve de fato um começo, será forçoso admitir que ele teve também uma causa.

Atualmente, a teoria para a origem do Universo mais aceita entre os cientistas é a do Big Bang. Toda a matéria do cosmos estaria compactada num único ponto de densidade quase infinita que explodiu, dando origem às galáxias, estrelas e planetas. Não cabe avaliar aqui se é correta ou não essa teoria, mas uma coisa é certa: ela levou os cientistas a concluir que o Universo teve um início e colocou os incrédulos num beco sem saída. Outra maneira de concluir que o Universo teve um começo deriva da análise das leia da termodinâmica. A segunda lei da termodinâmica afirma que cada momento que passa, a quantidade de energia utilizável no Universo está ficando menor. Já conforme a primeira lei, a quantidade de energia no Universo é constante e finita.

Para ilustrar, imagine um automóvel. Ele tem uma quantidade finita de combustível (primeira lei) e está consumindo combustível durante todo o tempo em que está em movimento (segunda lei). Esse carro estaria funcionando agora se você tivesse ligado a ignição há um tempo infinitamente distante? Claro que não.

E o Universo? Ele estaria sem energia agora se estivesse funcionando desde toda eternidade passada. Mas aqui estamos nós. As estrelas ainda brilham. A Terra ainda gira em torno do Sol. Ainda respiramos e nos movemos. Logo, o Universo deve ter começado em algum tempo no passado finito. Ele não pode ser eterno.

A segunda lei também é conhecida como lei da entropia, e descreve (perdoem-nos os físicos a simplificação) a tendência dos sistemas à desorganização. Então, de onde veio a ordem original? (Aliás, como pode uma explosão gerar ordem?) E se ainda temos alguma ordem – assim como temos energia utilizável –, o Universo não pode ser eterno, porque, se fosse, teríamos alcançado a completa desordem (aumento de entropia) há muito tempo. Por isso, o físico britânico Stephen Hawking escreveu que, "no tempo real, o Universo tem um início". [2]

Aqui o naturalismo filosófico encontra sua limitação. Note bem: não havia mundo natural ou leis naturais antes do surgimento do Universo. Uma vez que a causa não pode vir depois de seu efeito, as forças naturais não foram responsáveis pela origem do Universo. Portanto, deve haver alguma coisa acima da natureza para realizar o trabalho. Isso é o que significa a palavra sobrenatural.

A conclusão que podemos chegar é a de que o Universo foi causado por alguma coisa externa ao tempo, ao espaço e à matéria – portanto, uma Causa eterna; uma Causa primeira não causada. E como o Universo apresenta lógica e funciona de acordo com leis finamente reguladas, concluímos também que essa Causa tem que ser muito inteligente. Essa conclusão é compatível com as religiões teístas, mas não está baseada apenas nessas religiões. Está baseada, igualmente, na razão e nas evidências.

Argumento Teleológico
O argumento teleológico (ou do propósito), em forma de silogismo, fica assim:
1. Todo projeto tem um projetista.
2. O Universo e a vida foram projetados.
3. O Universo e a vida têm um projetista.

À semelhança do que ocorre com o  argumento cosmológico, a primeira premissa do argumento teleológico parece bastante lógica. Já a segunda premissa precisa ser confirmada, pois, se for verdadeira, devemos concluir que o Universo e a vida foram projetados.
Para fazer essa demonstração, podemos começar com aquela que é considerada uma das mais "simples" formas de vida: a ameba. Segundo Richard Dawkins, em seu livro O Relojoeiro Cego, [6] a mensagem encontrada apenas no núcleo de uma pequena ameba é maior do que 30 volumes combinados da Enciclopédia Britânica. E a ameba inteira tem tanta informação em seu DNA quanto mil conjuntos completos da mesma enciclopédia. Agora pense na "máquina" mais complexa do Universo: o cérebro humano.

Resumindo, a informação complexa e específica da qual dependem todas as formas de vida e que simplesmente não poderia surgir por acaso é um dos maiores problemas para os defensores do evolucionismo naturalista. Esse tipo de informação aponta para uma Fonte informante inteligente.

Argumento Moral
O próprio Kant parece apontar para o argumento moral ao escrever "Duas coisa ocupam a mente com admiração e reverência sempre renovadas e crescentes quanto maior é a frequência e a regularidade com que alguém reflete sobre elas: o céu repleto de estrelas sobre mim e a lei moral dentro de mim". [7]

A questão é: Como explicar essa moralidade mais ou menos inerente a cada ser humano sem existência de um criador dessa moral? Mesmo tribos isoladas em florestas tropicais, que nunca tiveram contato com a mensagem cristã e sua moral elaborada, seguem códigos morais e padrões de justiça. Quando essa noção de certo e errado foi implantada na mente? Quando os seres humanos passaram a entender que mentir, roubar e trair constituem violações (pecados)? O debate ainda existe...

A essa altura, é bom deixar claro que sempre haverá espaço para a descrença, pois Deus não nos força a crer nEle. Além do mais, as certezas humanas (tanto as dos teístas quanto as dos ateístas) costumam se mostrar frágeis diante de certas situações da vida (como o sofrimento) e mesmo diante de contra-argumentações convincentes. Por isso a fé racional e relacional (confiança baseada em evidências suficientes e em comunhão com Deus) sempre será necessária.

(Michelson Borges)


Perguntas para discussão:
1. Para ser cético de verdade é preciso ser cético até o fim e seguir as evidências levem aonde levarem. Como você entende essa afirmação? De que forma esse pensamento pode levar alguém a Deus?
2. Você considera o argumento cosmológico convincente ao apontar uma Causa primeira para o Universo? Qual seria a alternativa para essa conclusão? Um universo sem causa? Matéria eterna não causada?
3. Leia Romanos 1:20. De que forma esse texto se relaciona com o argumento teleológico?
4. O argumento moral parte da constatação de que existe uma lei moral dentro de cada ser humano. Como isso também aponta para a existência de Deus?

Saiba mais:
Michelson Borges, A História da Vida (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), 2ª Ed. Este estudo é baseado no capítulo 8 desse livro.
Norman Geisler e Frank Turek, Não tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu (São Paulo: Vida, 2006), p. 299-324.

Referências:
1. Antony Flew, Um Ateu Garante: Deus existe (São Paulo: Ediouro, 2008). Alguns críticos atacaram Flew acusando-o de senil por publicar esse livro. No entanto, não rebateram as idéias do livro. Típico argumento ad hominem.
2. Aristóteles (328 a.C.-322 a.C.), filósofo grego e preceptor do imperador Alexandre, o Grande. Dentre várias máximas, aconselhava “ir aonde o argumento o levasse”.
3. Foi o cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) quem demonstrou cientificamente que organismos complexos não podem surgir de maneira inanimada.
4. Segundo Jonathan Hill, em seu livro As Grandes Questões Sobre a Fé (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008), “o filósofo cristão Richard Swinburne argumentava que, embora a ordem do Universo pudesse ser explicada em termos de leis naturais, essas leis, por si, implicavam, de certo modo, a existência de um legislador” (p. 54).
5. Stephen Hawking, Uma Breve História do Tempo (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008), p. 28.
6. Richard Dawkins, O Relojoeiro Cego (São Paulo: Companhia das Letras, 2001).
7. Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura (São Paulo: Martins Fontes, 2002); citado por Jonathan Hill, p. 60.

(O Resgate da Verdade, p. 15-19, CPB)